segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Pinheirinho e o ensino jurídico


André Jorgetto de Almeida
Representante Discente na Congregação

A ordem constitucional inaugurada em 1988 pela Constituição Federal (que, pasmem, após quase 24 anos, alguns juristas ainda chamam de “a nova Constituição”!), o direito passa a ser visto como instrumento de transformação social. No entanto, fatos como a ação de reintegração de posse ocorrida há mais de um mês em Pinheirinho, na cidade de São José dos Campos, evidenciam a desfuncionalidade dessa ordem.

Não queremos constatar essa insuficiência para encontrar fundamentos que, no futuro, tratem de servir como argumentos para depor a Constituição Federal e, sobretudo, suas garantias e direitos fundamentais.

Isso é que nos causa preocupação e perplexidade, afinal, após transcorridos mais de 20 anos, o Brasil parece ter avançado pouco em relação aos direitos humanos, quando em algumas vezes, parece não ter saído do lugar ou retrocedido. Por exemplo, em 2010, o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana - CDDPH aprovou um relatório sobre a condição da população atingida por barragens e a violação sofrida por ela (Relatório final: http://portal.mj.gov.br/sedh/cddph/relatorios/relatoriofinalaprovadoemplenario_22_11_10.pdf). Como é possível visualizar no índice do próprio relatório, foi diagnosticada a violação sistemática dos seguintes direitos:

1. Direito à informação e à participação;
2. Direito à liberdade de reunião, associação e expressão;
3. Direito ao trabalho e a um padrão digno de vida;
4. Direito à moradia adequada;
5. Direito à educação;
6. Direito a um ambiente saudável e à saúde;
7. Direito à melhoria contínua das condições de vida;
8. Direito à plena reparação das perdas;
9. Direito à justa negociação, tratamento isonômico, conforme critérios transparentes e coletivamente acordados;
10. Direito de ir e vir;
11. Direito às práticas e aos modos de vida tradicionais, assim como ao acesso e preservação de bens culturais, materiais e imateriais;
12. Direito dos povos indígenas, quilombolas e tradicionais;
13. Direito de grupos vulneráveis à proteção especial;
14. Direito de acesso à justiça e a razoável duração do processo judicial;
15. Direito à reparação por perdas passadas;
16. Direito de proteção à família e a laços de solidariedade social ou comunitária.

Como dá pra perceber, a grande maioria das violações não são enfrentadas exclusivamente pelos atingidos por barragens. Em Pinheirinho, o quadro durante e após a ação de reintegração de posse (vulgo desocupação trunculenta) não é mais acalentador. Isso pra não entrarmos em Belo Monte, mas, por ora, vamos nos restringir a Pinheirinho. O mesmo fantasma assombra esses três locais: a desfuncionalidade do estado de direito brasileiro.

Sabemos que essa desfuncionalidade é um fenômeno complexo demais pra ser tratado exaustivamente em uma postagem de um blog. Também fica difícil expor uma lista exaustiva dos pormenores do problema. Por isso, vamos apenas traçar as linhas gerais de uma reflexão, que embora modesta, se pretende fértil: ineficácia do direito e o ensino jurídico.

Inicialmente, cabe observarmos o seguinte: a ineficácia do direito não se dá, necessariamente, por um mau aprendizado daqueles responsáveis por ele. Ou seja, não é simplesmente o bacharel em direito que aprendeu errado ou não aprendeu as lições na faculdade, sendo as violações dos direitos fundamentais da população de Pinheirinho fruto da imperícia dos operadores do direito envolvidos no caso. O problema encontra-se não simplesmente na própria lógica que rege o pensamento dos juristas, mas na própria concepção do direito, que antecede essa lógica. Falamos, sim, de uma ideologia corrente no ensino do direito que influencia e determina todo o aprendizado e, consequente, aplicação do direito.

Caio, Tício e Mévio
No ensino do direito há uma concepção liberal-individualista que sustenta a desfuncionalidade do direito. O direito instituído e aprendido nas faculdades é forjado para resolver conflitos interindividuais. Como vemos nos manuais de direito, Caio, Tício e Mévio estão envolvidos em disputas em que num momento um deles encontra-se na posição de agente e outro na de vítima. Assim, se Mévio furta o carro de Tício, se Caio ocupa a propriedade de Mévio, ou se Tício vende um relógio quebrado para Caio, o operador do direito não tem muitas dificuldades em resolver o problema. No primeiro caso, trata-se de furto que, se qualificado, pode levar Mévio a cumprir 8 anos de prisão. No segundo, bem conveniente a Pinheirinho, trata-se de esbulho, passível de imediata reintegração de posse, para proteger os direitos reais de garantia. No terceiro, trata-se de vício redibitório, cabendo ação redibitória por parte de Caio, caso ele não saiba do defeito do relógio.

Em todos esses casos, o operador do direito dispõe de um conjunto de questões-chave, obtendo uma resposta pronta e rápida para a solução da controvérsia. Mas se alguns milhares de Caios e suas famílias ocupam uma propriedade irregular de Mévio Nahas, parece que os juristas só pensam o problema a partir da ótica forjada no modelo liberal-individualista de ensino do direito. O bacharel em direito parece, hoje, incapaz de responder aos problemas em que os conflitos cada vez mais têm um cunho transindividual.

Esse diagnóstico nos é dado por Lenio Luiz Streck (http://www.leniostreck.com.br) para o qual, “o judiciário, preparado para lidar com conflitos interindividuais, próprios de um modelo liberal-individualista, não está preparado para o enfrentamento dos problemas decorrentes da trans-individualidade, própria do (novo) modelo advindo do Estado Democrático de Direito previsto na Constituição promulgada em 1988”.

Ao lado dessa concepção liberal-individual presente na solução dos problemas, encontramos mais um outro sintoma dessa alienação no ensino do direito: muitas vezes ele se mantém afastado da realidade. Por exemplo, para explicar um instituto do direito penal (o estado de necessidade), os professores e manuais fazem uso da tábua da salvação. Trata-se de uma situação de naufrágio, na qual dois náufragos (Tício e Mévio) disputam uma tábua para se salvar. No caso, a tábua é capaz de salvar apenas um, não podendo suportar os dois ao mesmo tempo. Nessa situação, se um matar o outro, ele não será preso, pois a situação em que se encontrava exclui a ilicitude, fazendo com que esse assassinato não seja considerado crime. Naufrágios e tábuas da salvação não são fenômenos muito correntes no Judiciário brasileiro, então, por que insistir nesse exemplo nas classes? Por que não utilizar um exemplo mais corrente e verossímil nas aulas? Alguns exemplos são tão exagerados (um dos gêmeos siameses mata uma pessoa, mas não vai preso, pois seu irmão não cometeu o crime e não poderia ser punido por ele), que não dá pra acreditar que a manutenção dessa concepção liberal-individualista alienada seja um resíduo de inocência na formação dos juristas. Não podemos falar mais em ingenuidade, mas sim em um cinismo no comportamento do poder, que sabe muito bem o que está fazendo e faz assim mesmo.

Posto tudo isso, como não pensar que a desfuncionalidade acaba por ser a própria funcionalidade do sistema jurídico? Além do mais, uma funcionalidade desejada por ele? Enquanto o ensino do direito se mantiver afastado da transformação social, continuaremos a manter a Constituição e suas garantias fundamentais à deriva, sem tábua de salvação.