André Jorgetto de
Almeida
Representante Discente na Congregação
Representante Discente na Congregação
A ordem constitucional
inaugurada em 1988 pela Constituição Federal (que, pasmem, após quase 24 anos,
alguns juristas ainda chamam de “a nova
Constituição”!), o direito passa a ser visto como instrumento de transformação
social. No entanto, fatos como a ação de reintegração de posse ocorrida há
mais de um mês em Pinheirinho, na cidade de São José dos Campos, evidenciam
a desfuncionalidade dessa ordem.
Não queremos constatar essa
insuficiência para encontrar fundamentos que, no futuro, tratem de servir como
argumentos para depor a Constituição Federal e, sobretudo, suas garantias e
direitos fundamentais.
Isso é que nos causa
preocupação e perplexidade, afinal, após transcorridos mais de 20 anos, o
Brasil parece ter avançado pouco em relação aos direitos humanos, quando em algumas
vezes, parece não ter saído do lugar ou retrocedido. Por exemplo, em 2010, o
Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana - CDDPH aprovou um relatório
sobre a condição da população atingida por barragens e a violação sofrida por
ela (Relatório final: http://portal.mj.gov.br/sedh/cddph/relatorios/relatoriofinalaprovadoemplenario_22_11_10.pdf).
Como é possível visualizar no índice do próprio relatório, foi diagnosticada a
violação sistemática dos seguintes direitos:
1.
Direito à informação e à participação;
2. Direito à liberdade de reunião, associação e expressão;
3. Direito ao trabalho e a um padrão digno de vida;
4. Direito à moradia adequada;
5. Direito à educação;
6. Direito a um ambiente saudável e à saúde;
7. Direito à melhoria contínua das condições de vida;
8. Direito à plena reparação das perdas;
9. Direito à justa negociação, tratamento isonômico, conforme critérios transparentes e coletivamente acordados;
10. Direito de ir e vir;
11. Direito às práticas e aos modos de vida tradicionais, assim como ao acesso e preservação de bens culturais, materiais e imateriais;
12. Direito dos povos indígenas, quilombolas e tradicionais;
13. Direito de grupos vulneráveis à proteção especial;
14. Direito de acesso à justiça e a razoável duração do processo judicial;
15. Direito à reparação por perdas passadas;
16. Direito de proteção à família e a laços de solidariedade social ou comunitária.
2. Direito à liberdade de reunião, associação e expressão;
3. Direito ao trabalho e a um padrão digno de vida;
4. Direito à moradia adequada;
5. Direito à educação;
6. Direito a um ambiente saudável e à saúde;
7. Direito à melhoria contínua das condições de vida;
8. Direito à plena reparação das perdas;
9. Direito à justa negociação, tratamento isonômico, conforme critérios transparentes e coletivamente acordados;
10. Direito de ir e vir;
11. Direito às práticas e aos modos de vida tradicionais, assim como ao acesso e preservação de bens culturais, materiais e imateriais;
12. Direito dos povos indígenas, quilombolas e tradicionais;
13. Direito de grupos vulneráveis à proteção especial;
14. Direito de acesso à justiça e a razoável duração do processo judicial;
15. Direito à reparação por perdas passadas;
16. Direito de proteção à família e a laços de solidariedade social ou comunitária.
Como dá pra perceber, a
grande maioria das violações não são enfrentadas exclusivamente pelos atingidos
por barragens. Em Pinheirinho, o quadro durante e após a ação de reintegração
de posse (vulgo desocupação trunculenta) não é mais acalentador. Isso pra não
entrarmos em Belo Monte, mas, por ora, vamos nos restringir a Pinheirinho. O
mesmo fantasma assombra esses três locais: a desfuncionalidade do estado de direito brasileiro.
Sabemos que essa
desfuncionalidade é um fenômeno complexo demais pra ser tratado exaustivamente
em uma postagem de um blog. Também fica difícil expor uma lista exaustiva dos
pormenores do problema. Por isso, vamos apenas traçar as linhas gerais de uma
reflexão, que embora modesta, se pretende fértil: ineficácia do direito e o
ensino jurídico.
Inicialmente, cabe
observarmos o seguinte: a ineficácia do direito não se dá, necessariamente, por
um mau aprendizado daqueles responsáveis por ele. Ou seja, não é simplesmente o
bacharel em direito que aprendeu errado ou não aprendeu as lições na faculdade,
sendo as violações dos direitos fundamentais da população de Pinheirinho fruto
da imperícia dos operadores do direito envolvidos no caso. O problema
encontra-se não simplesmente na própria lógica que rege o pensamento dos
juristas, mas na própria concepção do direito, que antecede essa lógica.
Falamos, sim, de uma ideologia
corrente no ensino do direito que influencia e determina todo o aprendizado e,
consequente, aplicação do direito.
Caio, Tício e Mévio |
No ensino do direito há uma
concepção liberal-individualista que sustenta a desfuncionalidade do direito. O
direito instituído e aprendido nas faculdades é forjado para resolver conflitos
interindividuais. Como vemos nos manuais de direito, Caio, Tício e Mévio estão
envolvidos em disputas em que num momento um deles encontra-se na posição de
agente e outro na de vítima. Assim, se Mévio furta o carro de Tício, se Caio ocupa
a propriedade de Mévio, ou se Tício vende um relógio quebrado para Caio, o
operador do direito não tem muitas dificuldades em resolver o problema. No
primeiro caso, trata-se de furto que, se qualificado, pode levar Mévio a
cumprir 8 anos de prisão. No segundo, bem conveniente a Pinheirinho, trata-se
de esbulho, passível de imediata reintegração de posse, para proteger os
direitos reais de garantia. No terceiro, trata-se de vício redibitório, cabendo
ação redibitória por parte de Caio, caso ele não saiba do defeito do relógio.
Em todos esses casos, o
operador do direito dispõe de um conjunto de questões-chave, obtendo uma
resposta pronta e rápida para a solução da controvérsia. Mas se alguns milhares
de Caios e suas famílias ocupam uma propriedade irregular de Mévio Nahas, parece
que os juristas só pensam o problema a partir da ótica forjada no modelo
liberal-individualista de ensino do direito. O bacharel em direito parece,
hoje, incapaz de responder aos problemas em que os conflitos cada vez mais têm
um cunho transindividual.
Esse diagnóstico nos é dado
por Lenio Luiz Streck (http://www.leniostreck.com.br) para o qual, “o judiciário,
preparado para lidar com conflitos interindividuais, próprios de um modelo
liberal-individualista, não está preparado para o enfrentamento dos problemas
decorrentes da trans-individualidade, própria do (novo) modelo advindo do
Estado Democrático de Direito previsto na Constituição promulgada em 1988”.
Ao lado dessa concepção liberal-individual
presente na solução dos problemas, encontramos mais um outro sintoma dessa alienação no ensino do direito: muitas vezes ele se mantém afastado
da realidade. Por exemplo, para explicar um instituto do direito penal (o
estado de necessidade), os professores e manuais fazem uso da tábua da salvação.
Trata-se de uma situação de naufrágio, na qual dois náufragos (Tício e Mévio) disputam
uma tábua para se salvar. No caso, a tábua é capaz de salvar apenas um, não
podendo suportar os dois ao mesmo tempo. Nessa situação, se um matar o outro, ele
não será preso, pois a situação em que se encontrava exclui a ilicitude,
fazendo com que esse assassinato não seja considerado crime. Naufrágios e
tábuas da salvação não são fenômenos muito correntes no Judiciário brasileiro,
então, por que insistir nesse exemplo nas classes? Por que não utilizar um
exemplo mais corrente e verossímil nas aulas? Alguns exemplos são tão exagerados
(um dos gêmeos siameses mata uma pessoa, mas não vai preso, pois seu irmão não
cometeu o crime e não poderia ser punido por ele), que não dá pra acreditar que
a manutenção dessa concepção liberal-individualista alienada seja um resíduo de
inocência na formação dos juristas. Não podemos falar mais em ingenuidade, mas
sim em um cinismo no comportamento do
poder, que sabe muito bem o que está fazendo e faz assim mesmo.
Posto tudo isso, como não
pensar que a desfuncionalidade acaba por ser a própria funcionalidade do
sistema jurídico? Além do mais, uma funcionalidade desejada por ele? Enquanto o ensino do direito se mantiver afastado
da transformação social, continuaremos a manter a Constituição e suas garantias
fundamentais à deriva, sem tábua de salvação.
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